“As histórias são para quem as contam e para quem as escutam, não para quem as viveram.” 

Do lúdico ao trágico: a narrativa

“As histórias são para quem as contam e para quem as escutam, não para quem as viveram.” 

Do lúdico ao trágico: a narrativa

Friedrich no momento em que aceita o pacto oferecido a ele e Josh. L.C.Roman - 2021 ©

   

    Um conto das maldições do Cervo invernal é contada por um narrador que nunca se identifica, um ser mágico que presenciou o pacto oferecido aos dois amigos.

    No trecho inicial do primeiro capítulo: “Narradores, histórias e lacunas”, somos advertidos por ele de que as histórias são para quem as contam e para quem as escutam, e não para quem as viveram, remetendo ao quanto de que nossa existência depende da memória dos outros e vice-versa. Mas o narrador não se aprofunda, nem nesta, nem noutras questões, já que ele parte em um fluxo narrativo que não raro ruma para digressões, tanto sombrias, quanto lúdicas. Como que a evitar aprofundamentos, após nos empurrar de costas para algum assunto.

Friedrich no momento em que aceita o pacto oferecido a ele e Josh. L.C.Roman - 2021 ©

   

    Um conto das maldições do Cervo invernal é contada por um narrador que nunca se identifica, um ser mágico que presenciou o pacto oferecido aos dois amigos.

    No trecho inicial do primeiro capítulo: “Narradores, histórias e lacunas”, somos advertidos por ele de que as histórias são para quem as contam e para quem as escutam, e não para quem as viveram, remetendo ao quanto de que nossa existência depende da memória dos outros e vice-versa. Mas o narrador não se aprofunda, nem nesta, nem noutras questões, já que ele parte em um fluxo narrativo que não raro ruma para digressões, tanto sombrias, quanto lúdicas. Como que a evitar aprofundamentos, após nos empurrar de costas para algum assunto.

    Mas quem é esse narrador?

    Mas quem é esse narrador?

     Quando introduz a si, ao apresentar-se, ele limita-se a dizer que apesar de não conhecer tudo, que sabe bastante. E que andava tranquilo em seu caminho quando soube da história de um menino que desejou não crescer mais. Fica então subentendido que ele ande por aqui há muito tempo. Mas logo, no decorrer do enredo,  nos fica claro também que sua dimensão de tempo não é de fato a mesma nossa. Já que ele adverte, entre outras coisas,  não saber se quem vai ouvir essa história está antes, ou depois dos acontecimentos que serão narrados.

      Numa observação rápida, este narrador poderia ser comparado a personagens no estilo de Mefistófeles dos contos alemães da Idade Média, ou com um tipo de Djinn. Mas sem, no entanto, ter mais do que a simples curiosidade como motivação. Pois ele jamais interfere na jornada de Josh. E também quando o leitor tenta captar dele qual o direcionamento que pretende, ele nos escapa com digressões, ou reviravoltas que impedem, tanto a ele, quanto a nós, de chegarmos a uma conclusão. E isso, na construção desse narrador, objetiva não ofuscar a reflexão do leitor, e sim estimulá-la, tanto por deixá-lo curioso, ou até mesmo com raiva.

Josh chega ao abrigo para crianças perdidas do cuidadoso, mas assustador, "diretor com os olhos de um mocho", Cap. VI. L.C.Roman - 2021 ©.

     Quando introduz a si, ao apresentar-se, ele limita-se a dizer que apesar de não conhecer tudo, que sabe bastante. E que andava tranquilo em seu caminho quando soube da história de um menino que desejou não crescer mais. Fica então subentendido que ele ande por aqui há muito tempo. Mas logo, no decorrer do enredo,  nos fica claro também que sua dimensão de tempo não é de fato a mesma nossa. Já que ele adverte, entre outras coisas,  não saber se quem vai ouvir essa história está antes, ou depois dos acontecimentos que serão narrados.

      Numa observação rápida, este narrador poderia ser comparado a personagens no estilo de Mefistófeles dos contos alemães da Idade Média, ou com um tipo de Djinn. Mas sem, no entanto, ter mais do que a simples curiosidade como motivação. Pois ele jamais interfere na jornada de Josh. E também quando o leitor tenta captar dele qual o direcionamento que pretende, ele nos escapa com digressões, ou reviravoltas que impedem, tanto a ele, quanto a nós, de chegarmos a uma conclusão. E isso, na construção desse narrador, objetiva não ofuscar a reflexão do leitor, e sim estimulá-la, tanto por deixá-lo curioso, ou até mesmo com raiva.

Josh chega ao abrigo para crianças perdidas do cuidadoso, mas assustador, "diretor com os olhos de um mocho", Cap. VI. L.C.Roman - 2021 ©.

Ratos, pombos e corujas

Ratos, pombos e corujas

    Porém, a onisciência do narrador não é de forma alguma absoluta. Visto também que ele “desaparece” por um bom tempo em trechos que são apenas descritivos, o que dá fluidez narrativa ao livro. E outro ponto que fragmenta esse narrador onipresente é que, como ele próprio confessa, contou com a ajuda de outros narradores, como é explicado no trecho: ratos, pombos e corujas.

    Porém, a onisciência do narrador não é de forma alguma absoluta. Visto também que ele “desaparece” por um bom tempo em trechos que são apenas descritivos, o que dá fluidez narrativa ao livro. E outro ponto que fragmenta esse narrador onipresente é que, como ele próprio confessa, contou com a ajuda de outros narradores, como é explicado no trecho: ratos, pombos e corujas.

"O menino de brinquedo" o solitário manequim da loja de brinquedos Jungenreich. L.C.Roman - 2021 ©

      E esses outros narradores, caracterizados por visões e personalidades diferentes, se fundem ao narrador principal. Explicando assim as flutuações narrativas que vão desde descrições mais pormenorizadas e pouco emotivas, como fariam as corujas, quanto à digressões que desafiam o bom senso, como no caso dos pombos. O que dá ao livro um caráter “sinuoso”, pois em alguns momentos estamos diante da descrição não romantizada de um campo de batalha. Como em outro, estamos dentro de uma fabulosa loja de brinquedos, ou esperando com Josh por quem jamais vai voltar, em uma sala de espera de um hospital. Portanto, o narrador usa como desculpa para suas digressões, a ajuda desses outros relatores. O que nunca deixam o mergulho ser demais, tanto na fantasia, quanto no realismo da narrativa.

"O menino de brinquedo" o solitário manequim da loja de brinquedos Jungenreich. L.C.Roman - 2021 ©

      E esses outros narradores, caracterizados por visões e personalidades diferentes, se fundem ao narrador principal. Explicando assim as flutuações narrativas que vão desde descrições mais pormenorizadas e pouco emotivas, como fariam as corujas, quanto à digressões que desafiam o bom senso, como no caso dos pombos. O que dá ao livro um caráter “sinuoso”, pois em alguns momentos estamos diante da descrição não romantizada de um campo de batalha. Como em outro, estamos dentro de uma fabulosa loja de brinquedos, ou esperando com Josh por quem jamais vai voltar, em uma sala de espera de um hospital. Portanto, o narrador usa como desculpa para suas digressões, a ajuda desses outros relatores. O que nunca deixam o mergulho ser demais, tanto na fantasia, quanto no realismo da narrativa.

Sobre o cervo do título

Sobre o cervo do título

 

   O Cervo Invernal, uma criatura temida pelos moradores que ao ser avistado anunciaria acontecimentos desfavoráveis, é um dos personagens mágicos que habita a floresta que rodeia a Aldeia de Retalhos. Ele nos é apresentado de forma não muito clara, e não consegue ser definido nem mesmo pelo narrador, apesar deste revelar ter certo grau de proximidade com ele:

 

   O Cervo Invernal, uma criatura temida pelos moradores que ao ser avistado anunciaria acontecimentos desfavoráveis, é um dos personagens mágicos que habita a floresta que rodeia a Aldeia de Retalhos. Ele nos é apresentado de forma não muito clara, e não consegue ser definido nem mesmo pelo narrador, apesar deste revelar ter certo grau de proximidade com ele:

Bem, eu o conheço. E é estranho quando ouvimos de outros, comentários sobre aqueles de quem somos próximos. Ficamos chocados pelo fato de eles não saberem nada a respeito de alguém que nos é querido, ou estarrecidos por eles verem aquilo que até então não notamos.” Cap. I, O cervo Invernal.

Bem, eu o conheço. E é estranho quando ouvimos de outros, comentários sobre aqueles de quem somos próximos. Ficamos chocados pelo fato de eles não saberem nada a respeito de alguém que nos é querido, ou estarrecidos por eles verem aquilo que até então não notamos.” Cap. I, O cervo Invernal.

    O personagem é inspirado tanto nas lendas xamânicas, quanto no conto o Gamo Encantado, (Irmãos Grimm) sobre um garoto transformado em gamo após beber água em um lago. Ele tem a função no enredo de ser apenas o propulsor da trama/tragédia, ao ofertar aos dois meninos, depois do acidente, a oportunidade poderem voltar às suas casas, sob a condição de que deveriam para isso ter cada um deles um desejo atendido. Condição que possuiu um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que oferta um desejo, oculta uma maldição. E a maldição é o preço que pagarão por uma escolha que não os fará mudar nunca, porque nada nos impede mais de amadurecer do que ter nossos desejos atendidos.

    O personagem é inspirado tanto nas lendas xamânicas, quanto no conto o Gamo Encantado, (Irmãos Grimm) sobre um garoto transformado em gamo após beber água em um lago. Ele tem a função no enredo de ser apenas o propulsor da trama/tragédia, ao ofertar aos dois meninos, depois do acidente, a oportunidade poderem voltar às suas casas, sob a condição de que deveriam para isso ter cada um deles um desejo atendido. Condição que possuiu um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que oferta um desejo, oculta uma maldição. E a maldição é o preço que pagarão por uma escolha que não os fará mudar nunca, porque nada nos impede mais de amadurecer do que ter nossos desejos atendidos.

    A narrativa de Um conto das maldições do Cervo Invernal, com esses narradores dúbios, ora presentes, ora nem tanto, nos instiga a continuar por uma leitura que quando pensamos que estamos sendo guiados em uma direção, somos então deixados sozinhos em alguma clareira na floresta, ou num bairro hostil de uma cidade movimentada. E também quando somos defrontados com a reflexão de que uma guerra atinge mesmo a quem já está distante dela há anos, ou nem sequer nasceu, somos também recordados do jeito correto de se comer algodão-doce.

     Portanto, a narrativa nos oferece esse passeio por uma montanha-russa, que numa tarde de sol, nos leva às vezes a nostalgia, desespero e alegria. O que torna esse enredo com mais de quatrocentas e poucas páginas num livro curto, mas do tipo que quando colocamos de volta na estante, nunca mais sai de nossa cabeça.

A tenda da companhia Groof & Hoffmann, "uma mistura de chapéu de bruxo com bolo de aniversário". L.C.Roman - 2021 ©

    A narrativa de Um conto das maldições do Cervo Invernal, com esses narradores dúbios, ora presentes, ora nem tanto, nos instiga a continuar por uma leitura que quando pensamos que estamos sendo guiados em uma direção, somos então deixados sozinhos em alguma clareira na floresta, ou num bairro hostil de uma cidade movimentada. E também quando somos defrontados com a reflexão de que uma guerra atinge mesmo a quem já está distante dela há anos, ou nem sequer nasceu, somos também recordados do jeito correto de se comer algodão-doce.

     Portanto, a narrativa nos oferece esse passeio por uma montanha-russa, que numa tarde de sol, nos leva às vezes a nostalgia, desespero e alegria. O que torna esse enredo com mais de quatrocentas e poucas páginas num livro curto, mas do tipo que quando colocamos de volta na estante, nunca mais sai de nossa cabeça.

A tenda da companhia Groof & Hoffmann, "uma mistura de chapéu de bruxo com bolo de aniversário". L.C.Roman - 2021 ©